A Prefeitura de Campinas (SP) só conseguirá aproveitar a proposta de financiamento anunciada esta semana pelo Governo Federal para modernizar o trânsito da cidade se cumprir uma série de pré-requisitos essenciais, apontam especialistas. O “dever de casa” inclui pelo menos três pontos basilares: qualificar a pavimentação, aperfeiçoar o controle de tráfego e aliar o sistema de bilhetagem de Campinas ao da Região Metropolitana (RMC).
Enquanto a União oferece futuros investimentos, a nova licitação do transporte público campinense foi adiada mais uma vez pelo Palácio dos Jequitibás. Além disso, a Administração contratou a Bolsa de Valores como assessora para auxiliar no processo, o que foi classificado por vereadores como uma ação meramente marqueteira.
Em meio ao debate, a população que depende dos ônibus manifesta crescente insatisfação, reclamando da excessiva “teoria” e da lentidão na resolução dos problemas práticos que afetam-na cotidianamente.
Investimento
Campinas pode receber até R$ 7,7 bilhões em financiamentos até 2054 para poder transformar o transporte público municipal. É que a cidade foi incluída no plano do Palácio do Planalto, que propõe a construção de 47 a 65 quilômetros de linhas para o VLT (Veículo Leve sobre Trilhos), um tipo de trem moderno e urbano, que circula em trilhos exclusivos; e de 20 a 38 quilômetros de ônibus BRT (Bus Rapid Transit), que trafegam em corredores exclusivos, separados do trânsito comum.
Ambos agilizam as viagens, tornando-as mais rápidas, quando comparadas aos veículos similares comuns. A redução de tempo deve injetar R$ 2,5 bilhões na economia de Campinas, e os novos sistemas, mais eficientes, poderão gerar uma queda de 4% no custo operacional para as viações por pernada.
O estudo foi feito pelo Ministério das Cidades e pelo BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) – estatal que financia projetos de longo prazo no Brasil – e apontou que, com a implantação do programa, as viagens serão ainda mais seguras e menos poluentes, gerando um impacto econômico de R$ 2,5 bilhões para a região.
Em relação à sustentabilidade, projeta uma redução de 51 mil toneladas de gás carbônico anuais. Quanto à segurança, o evite de 180 mortes no tráfico por ano.
A proposta ainda listou as ligações mais urgentes para conectar Campinas, seja dentro da própria cidade, seja à região, focando nas áreas em que há maior fluxo de passageiros. Para o BRT, listou três rotas: Unicamp, Miguel Burnier e Orosimbo Maia. Já para BRT e VLT, outras três: Viracopos–Campinas, Sumaré–Campinas e Santos Dumont.
“Com o estudo, o BNDES contribui com a produção de uma política pública para uma estratégia nacional de mobilidade urbana, de longo prazo e sustentável. O objetivo é melhorar a qualidade de vida dos brasileiros e brasileiras, com um transporte mais eficaz, menos poluidor e mais seguro”, afirma o presidente do banco, Aloizio Mercadante.

Primário
Mas, para que a prefeitura de Campinas possa aproveitar a oportunidade oferecida pela União, terá que fazer uma lição de casa, inadiável e independente do apoio federal, segundo análise do mestre em Planejamento Urbano, Ayrton Camargo e Silva, ex-diretor da Emdec (empresa municipal responsável pelo trânsito campineiro).
“O BNDES é uma excelente oportunidade para projetos estruturantes, mas de nada adianta ter um BRT de ponta se a infraestrutura básica da cidade for precária. A prefeitura precisa fazer a sua parte imediatamente,” afirma. O especialista elenca três eixos prioritários que dependem exclusivamente da gestão municipal e que são essenciais para elevar o padrão do transporte coletivo.
Primeiro, chama a atenção para a qualificação das vias, porque a atual pavimentação é “incompatível com a operação dos novos veículos”. Buracos, desníveis e a má conservação asfáltica forçam a redução da velocidade, aumentam o desgaste dos ônibus e deterioram a experiência do passageiro.
Em segundo lugar, pontua que o atual sistema de controle de tráfego precisa ser modernizado. Nesse sentido, o semáforo deve deixar de ser um mero regulador de fluxo e se tornar uma ferramenta de gestão da operação. A tecnologia deve ser utilizada para priorizar a passagem dos ônibus e, crucialmente, garantir a pontualidade e o controle dos intervalos.
E, em terceiro, a falta de diálogo entre o sistema de bilhetagem de Campinas e o da Região Metropolitana (RMC), já que a ausência de uma integração simplificada penaliza o usuário, que precisa utilizar o transporte em cidades vizinhas, desestimulando o uso do coletivo em detrimento do transporte individual.
“Só melhorando a qualidade, a pontualidade, o conforto e a integração é que conseguiremos convencer o cidadão a deixar o carro na garagem. Os projetos do BNDES são o teto, mas a lição de casa é a fundação. E a fundação, hoje, ainda está fraca,” conclui.
Novela
Esta semana, a prefeitura de Campinas (SP) descumpriu o prazo que ela mesma estipulou para o lançamento do novo edital do transporte público. O Executivo havia afirmado que o documento sairia em outubro, mas já o adiou, novamente, e, agora, o previu para novembro.
Contudo, desta vez, há uma novidade no imbróglio licitatório – que se estende há anos (leia mais abaixo). O Palácio dos Jequitibás entrou na Bolsa de Valores. Contratou a B3 S.A. por R$180.053,02 para que a empresa faça, segundo a prefeitura, análise técnica e documental das propostas de possíveis interessados.
O trabalho, entretanto, não será 100% feito pela “terceirizada”, mas, também, pela Secretaria de Administração e pela Procuradoria municipais.
“A contratação demonstra a intenção do governo municipal em tornar o processo mais amplo e transparente, dando maior visibilidade à concorrência”, declara Vinicius Riverete, presidente da Emdec.

Já o vereador Gustavo Petta (PCdoB) elenca os prejuízos causados pelo imbróglio. “Isso virou uma novela. Já foram diversos adiamentos, sempre prejudicando a população. Quanto mais tempo demora o processo licitatório, mais tempo permanece essa situação caótica do transporte público da cidade”.
Petta pontua que Campinas tem “uma das tarifas mais caras do país, que os ônibus quebram diariamente, que não têm ar-condicionado, nem wi-fi, nem as exigências que uma nova licitação deve trazer, como a eletrificação da frota”.
Cita que avanços já foram conquistados por outras cidades, como Belém do Pará e as paulistas, Louveira, Santos, São José dos Campos e Vinhedo.
Quanto à Bolsa de Valores, lembra que o processo licitatório não tem a exigência dessa contratação. “Parece mais uma jogada de marketing do prefeito (Dario Saadi)para poder bater o martelinho lá na B3, junto com o governador Tarcísio (de Freitas). Então, por uma jogada de marketing, você utiliza recursos públicos e adia mais uma vez a licitação em Campinas”.

Morosidade
O primeiro edital da gestão Saadi remonta a 2022. Para a redação do documento foram consideradas as indicações feitas pela Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas).
Mas, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) suspendeu a licitação em 2023, depois que empresas interessadas questionaram 50 aspectos do certame. A Corte determinou, então, que a prefeitura alterasse 14 desses 50 pontos questionados. Entendeu que precisavam de ajustes técnicos, ou seja, não encontrou má-fé em nenhum deles.
Entretanto, nenhuma empresa se interessou pelo transporte público campineiro, e a licitação foi declarada deserta. O processo recomeçou, com a prefeitura abrindo uma nova consulta pública. Recebeu 131 sugestões.
No fim do ano seguinte, ou seja, em dezembro de 2024, realizou 11 audiências públicas para apresentar o novo edital à população. Já em abril deste ano, abriu uma minuta para uma nova consulta pública, recebendo mais 1.130 recomendações.
Para a faxineira Célia dos Santos, o diálogo proposto não se materializa, na prática. “Qual é o porquê disso? Pra gente, que pega essas latas de sardinha todo dia, isso é, na verdade, só uma enrolação, porque todo mundo sabe o que é que precisa ser feito. Mas, ao invés de fazer, ficam analisando o sexo dos anjos, enquanto o povo é quem sofre”.